sexta-feira, novembro 03, 2006

conto

foto Mariana QLima

Era só mais um encontro. Desses que se discuti planos e nostalgia. Bebe-se uma cerveja e ri de bobeira. Era pra ser só mais um encontro.
Estávamos em quatro na mesa. Bom, primeiro em quatro com um estranho, depois com quatro de nós mesmos. Eu falava do futuro, de novidades com todo meu fôlego entusiástico. Buli também dizia de suas expectativas e toda a animação desde o último encontro. O Primeiro só ouvia. O Estranho palpitava no que achava que devia. Tínhamos ideias de coisas maravilhosas. E falávamos, e falávamos.
O Primeiro meio sem jeito, e ainda esperando a chegada do Segundo, começou a falar. No começo foi meio vacilante e receoso. Mas foi desenvolvendo as ideias e conclusões. Nada tinha a perguntar ou questionar, somente mesmo o que veio a dizer. Cansado de esperar e sem medo ou paciência disse que estava tudo terminado. Ao menos pra ele. Estava fora. Explicou os motivos e pronto! Estava fora finalmente. Assim como havia planejado e decidido há meses, antes do grande show.
Não pude compreender por que disse isso tudo somente agora. Eu era nova no grupo e com toda minha energia possível. Mas nem mesmo a Buli que era velha entre tais pode entender quão repentina e imprevisível decisão. Como um tapa em meu rosto, um susto, uma decepção, em trem de doido! Todos os meus planos foram por água abaixo e num pude fazer nada.
A cerveja degelando molhava os guardanapos ao pé da garrafa. Numa pequena travessa de aço inox barato, dois pastéis de 4 por 4 cm nos assistiam em cima de toalhas de papel encharcadas de gordura. Deviam estar frios, pareciam estar placidamente frios. Confinados a esperar um estômago inquieto ou a limpeza da cozinha. Sua gordura coagulada pela superfície dava um ar de pesado, como se quem os deveria ter comido não fosse vivo mais. Eram passado. Frio e cinza.
Minha garganta estava seca. Mesmo depois de um suco, mas mais depois do tapa. Peço um outro suco e coloco bastante açúcar. A garganta seca reclama e vacila. A batata chega e já minha boca, antes sem lugar e palavras, se ocupa. Como, e de nervoso assalgo!
Em instantes o Estranho ainda na mesa se decidiu ir-se embora, depois de muito discutir sobre direitos autorais e registro de material. Foi-se e então nosso momento de cumplicidade tomou-se.
Num instante, tão surpreendente, aparece-nos à porta o Segundo. Sim, talvez aquela ponta de salvação possa fazer parte ainda deste dia! Ele se senta, e eu cá com todo um esquema de nova vida a dizer. Explico sem espera-lo respirar muito. Digo da nova situação e sem demora já exponho nosso destino. Destino por mim desenhado e ainda em estado de formação. Espero resposta. Olho em seus olhos e ele com aquele sorriso amarelo. Seria mais fácil se tivesse chegado antes. Seria mais fácil uma conversa só. Não sei o que passa por aquela cabeça. Não consigo prever a resposta apesar de minha sabedoria dizer-me o que vai acontecer.
foto Mariana QLima
A travessa de batata me faz lembrar os pastéis. Em cima de um guardanapo engordurado reside a última batata. O fundo forrado de sal reflete um fosco brilho da luz do bar. Meu suco de popa de morango está pela metade. Todo o açúcar que pus não me resolveu. A boca continua inquieta. A mesa, sem toalha, está tomada de poças d'água. Uma garrafa nova de cerveja toma conta da molhança. Brinco com um guardanapo tentando enxugar a superfície. Ele se desfaz entre meus dedos e sou obrigada a juntá-lo a um canto central na mesa perto da travessa de batatas. Agora não há mais batata. Foi para dentro do Segundo que chegou ainda há pouco.

Ele ainda sorri e na verdade pensa no que dizer. O assunto se desvia e anda meio torto por segundo vagarosos. Alguma descontração é instalada pela força. Um zoa. Outro ri. Meu riso nem sei mais quer cor tem. Faço de novo a pergunta anterior. Digo minha proposta de solução. Quase começo a devagar possibilidades, mas antes de minhas veias subirem pela positiva exaltação ele solta suas palavras. E agora sim, é como se eu estivesse tonta e fosse cair por nocout. O Segundo com a voz pausadamente, e escolhendo as palavras para parecer óbvia sua decisão e postura quanto ao caso, diz. Diz que seus horários vãos mudar e que menos tempo terá para se dedicar às nossas atividades. Desiste de continuar mesmo antes de sentir a perda. Talvez já soubesse.
Oras, e num foi pelo mesmo motivo que o Primeiro saiu da banda? Tenho aqui pra mim que o Segundo saiu mais pelo fato de estar sem o Primeiro entre nós do que por outros motivos.
Meus olhos não sabem pra onde olhar. Um cansaço repentino toma conta de meus movimentos agora lentos. Esforço todo em vão. Planos todos em vão. É como se não tivesse mais sentido ficar ali e olhar aqueles rostos lavados e tranquilos. Um breve pensamento de fuga me passa pela mente e quase menciono minha partida da noite. Mas minha língua não deixa. Não sei o que dizer. Não quero ir embora. Ainda sinto uma união entre nós. Como se eu pudesse falar sobre coisas que nunca poderia com outros. Mas é só sensação por que nunca me senti tão à vontade assim. Ao mesmo tempo em que tenho a perda um novo sentido de liberdade me toma. É pequeno, quase minúsculo, mas existe.
Depois de tamanha estupefação um último pacto foi feito entre nós quatro. E quem sabe ainda nos reuniremos? Pode ser que assim seja o destino destes quatro amigos. Tanto quanto poderá ser de nunca mais tocarmos juntos.

A conversa foi se virando e revirando. Uns diziam do passado íntimo, outros falavam do acaso. A nostalgia e o prazer fugaz do último show foi relembrado e criticado em todos seus aspectos e detalhes. Ali sentavam não mais pessoas com elos profissionais, mas sim quatro descompromissados amigos de primavera. Aqueles com os quais talvez nunca mais encontrarás nas mesmas condições, mas um abraço darão e juntos relembrarão desses tempos. Esses tempos que por mais sacrificados sejam para uns, foi de grande agrado para todos.
A noite foi se embrenhando pelas horas. Meus olhos foram pesando e o corpo comportava-se tonto. Fomos embora. Os quatro juntos. Pela última vez naquele carro apertado.
Nos despedimos e pronto. Foi só isso que aconteceu. Mais nada.

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